TORPEDO # 37 - Um ótimo thriller escondido num porão
“Herança” traz um duelo entre os atores britânicos Lilly Collins e Simon Pegg que pode fazer o público se lembrar de Jodie Foster e Anthony Hopkins em “O Silêncio dos Inocentes”
STREAMING
“Herança” é intrigante, claustrofóbico e muito bom
“Herança” é mais um desses casos curiosos que a gente encontra nas plataformas de streaming. O filme já tem quatro anos, passou razoavelmente batido pelos cinemas e não causou furor quando chegou à diversão caseira. Aí a Netflix resolve colocar agora o título numa oferta generosa em sua home. E não é que o filme vai para o topo dos mais vistos? Este editor resolveu assistir porque tem no elenco Simon Pegg, ator britânico de filmes independentes muito legais, mas mais conhecido do público pela sensacional comédia de zumbis “Todo Mundo Quase Morto” ou por seus trabalhos em franquias blockbusters: ele é o Scotty da retomada recente de “Star Trek” por J.J. Abrams e também o Benji da turma de Tom Cruise em “Missão Impossível”. E Pegg é mesmo o que transforma “Herança” em um thriller bem bacana, com ajuda de Lilly Collins.
A filha do cantor Phil Collins já tem uma carreira consolidada e desde 2020 é a estrela de “Emily em Paris”, a bem-sucedida série que terá sua quarta temporada estreando em agosto. Em “Herança”, ela é Lauren Monroe, uma promotora pública destemida e famosa por não aliviar em casos de corrupção, embora tenha de lidar com teto de vidro em casa: seu pai magnata não é flor que se cheire, e o irmão congressista acumula muitas suspeitas contra sua atuação política. O pai de Lauren morre de infarto e, além de ganhar uma ínfima parte do dinheiro dele, que fica quase todo para a mãe e o irmão, ela recebe uma mensagem enigmática deixada em vídeo e uma chave. A porta que Lauren consegue abrir com ela é uma escotilha no enorme terreno da propriedade da família, que esconde a entrada para um bunker onde Lauren encontra Morgan, acorrentado num quarto com cama, mesa, cadeiras, banheiro e praticamente mais nada. Ele diz para Lauren que o pai dela o trancou ali nos últimos 30 anos!
Aí o filme realmente começa, com Lauren sem saber o quanto deve acreditar em Morgan, que vai revelando segredos do passado da família dela, inclusive coisas bem pesadas que teriam motivado o milionário a aprisioná-lo no bunker. A partir aos relatos do prisioneiro, ela parte para investigar o que pode ser verdade em tudo aquilo. Lauren precisa lidar com o receio de descobrir coisas escabrosas sobre o pai e também com a grande dúvida: acredita no horror atroz que Morgam teria sofrido a ponto de dar a ele a liberdade? E o filme dirigido por Vaughn Stein, de carreira inexpressiva além deste longa, consegue lidar bem com o mistério até o final. Simon Pegg é tão convincente como Morgan que dificilmente alguém chegará ao final da sessão sem torcer por ele. Um filme que vale a pena. Eis aqui o trailer.
MÚSICA
Beth Gibbons volta para aliviar fãs de Portishead
Classificar gêneros musicais às vezes gera discussão, com cada um reconhecendo características diferentes naquele som. Numa descrição ligeira, o trip hop pode ser definido com uma música eletrônica em batidas desaceleradas, com influências de cool jazz e funk de raiz, que adota teclados e programações com o uso de instrumentos acústicos aqui ou ali. Mesmo quem tiver alguma restrição a essa receita vai concordar em uma coisa: a inglesa Beth Gibbons é a rainha do trip hop. Como vocalista do Portishead, ela formatou a coisa toda em apenas três álbuns de estúdio: “Dummy” (1994), “Portishead” (1997) e “Third” (2008). Seu jeito peculiar de cantar, com pausas respiratórias incomuns e facilidade em criar sons sedutores, está em faixas do grupo que já foram associadas a jazz, rock alternativo, música folk e até a um certo “pop barroco”, seja lá o que for isso. Melhor chamar logo de “som do Portishead”, já que o sotaque da banda é facilmente reconhecido. Seu trabalho além do grupo tinha até agora “Out of Season” (2002), álbum gravado com Paul Douglas Webb, baixista da ótima banda inglesa Talk Talk, e uma gravação da “Sinfonia Número 3” do compositor polonês Henryk Górecki, acompanhada de orquestra. Realmente, Beth não é fácil. Mas agora, aos 59 anos, ela lança um álbum que facilmente vai cair nos corações dos fãs do Portishead. “Lives Outgrown”, praticamente sua estreia solo, tem canções escritas durante a última década e, segundo a própria cantora, com foco em temas femininos: ansiedade, maternidade, menopausa e mortalidade. As mortes recentes de parentes e amigos levam o disco a um clima um tanto sombrio, frio até, mas nele a voz de Beth encontra acolhida para seu timbre singular. Ela se animou e agora volta à estrada para espalhar canções incríveis como essas que podem ser conferidas em clipes: “Floating on a Moment”, “Lost Changes” e “Reaching Out” (clique nos títulos para assistir. Uma boa pedida é ver a gravação ao vivo de oito músicas que ela fez no estúdio holandês Artone, em Haarlem, uma verdadeira meca para músicos que desejam produzir um som vintage. Clique aqui para acompanhar essa performance emocionante.
CINEMA
A veterana Liliana Cavani discute o fim do mundo
Liliana Cavani é uma das gigantes do cinema italiano. Ela dirigiu pelo menos duas obras-primas. A primeira é “O Porteiro da Noite”, de 1974, filme obrigatório para qualquer pessoa que queira se declarar um cinéfilo. Em 1957, Lucia, uma sobrevivente do Holocausto, reencontra o oficial nazista Max, e os dois retomam o relacionamento sadomasoquista que mantiveram durante o cativeiro dela em campo de concentração. Nos papéis principais, os ótimos ingleses Dirk Bogarde e Charlotte Rampling. A segunda é “A Pele”, que mostra como a vida em Nápoles é afetada em 1943, depois que os aliados libertam a cidade dos nazistas. O filme reúne dois pesos pesados das telas: o americano Burt Lancaster e o italiano Marcello Mastroianni. Agora, aos 91 anos, Cavani tem disposição para dirigir seu décimo sétimo longa para cinema, “A Ordem do Tempo”, em cartaz no Brasil. É um filme “pequeno”, intimista, tratando de um grande assunto: o fim do mundo. Baseado no best-seller de mesmo nome escrito pelo físico italiano Carlo Rovelli, a narrativa reúne nove pessoas numa festa de aniversário, a maioria delas físicos. Um deles vai alertar para a real possibilidade de a Terra ser destruída em poucas horas, numa catástrofe cósmica ainda não divulgada pelos governos. Aí o filme se desenvolve em várias conversas paralelas, que às vezes são trançadas, discutindo a finitude humana. Em outras mãos, o filme poderia descambar para algo sem rumo, mas Cavani consegue envolver o espectador nessas derivações filosóficas com muito encantamento. Ainda bem que ela está na ativa. Confira aqui o trailer.
STREAMING
Retrato vibrante de uma quase revolução americana
Eis aqui uma indicação que passa longe de entretenimento, o que é algo um tanto incomum nesta newsletter. Mas é impossível não falar de “The Black Power Mixtapes 1965-1971”, um documentário nada perfeito, mas com material que é pura dinamite, disponível agora no Prime Video. No período indicado no título, por várias vezes repórteres da TV estatal sueca foram aos Estados Unidos documentar os avanços e os revezes da luta pelos direitos civis. Nessa tarefa, reuniram uma vasta quantidade de gravações com os principais lideres do movimento negro no país. Esse material foi utilizado em vários programas na Suécia, mas nunca tinha sido apreciado de uma maneira mais ampla. Em 2011, um grupo de editores e jornalistas concluiu esse documentário, que traz as vozes de alguns nomes incontornáveis no movimento negro americano, como Eldridge Cleaver, Stokely Carnichael e, num visceral depoimento dentro da prisão, Angela Davis, a mais popular deles. A quantidade de informação é enorme, cruzando lutas sociais muito duras com a evolução do grupo radical Panteras Negras e a causa de paz mundial nos protestos contra a Guerra do Vietnã. Uma ressalva deve ser feita: talvez o filme não consiga atrair quem não tem praticamente informação alguma sobre essa cena, porque a preocupação de contextualização inexistiu nos editores suecos. Por exemplo: muito é falado sobre o arrefecimento do movimento, principalmente porque alguns depoimentos foram tomados nos anos 1970, quando retrocessos já tinham obrigado seus participantes a uma reflexão sobre as ambições que carregavam no final da década anterior. Mas o documentário não elenca de forma didática quais foram esses problemas enfrentados pelos militantes. No fim das contas, tudo é muito relevante. Um filme que mostra como uma quase revolução chegou bem perto de acontecer na maior potência mundial. Eis aqui o trailer, infelizmente sem legendas. Ops, sim, o filme na plataforma tem legendas, claro.
O MUNDO JÁ FOI MELHOR # 37
Fotos comprovam: a Terra foi habitada por gente muito bacana.
Donald Sutherland fez pelo menos uma dúzia de filmes incríveis, principalmente nos anos 1970, mas, nas notícias de sua morte, na semana passada, aos 88 anos, a principal referência nos textos foi chamá-lo de “ator de ‘Jogos Vorazes’”. Na memória curtíssima das pessoas em 2024, só um papel menor em um blockbuster meia-boca merece menção. Tenha dó. Na foto, Elliott Gould e Donald Sutherland jogam golfe em plena frente de combate. Era o cenário do filme “M*A*S*H” (1970), uma das mais devastadoras sátiras às guerras de intromissão típicas do governo americano, dirigido por Robert Altman. Sutherland e Gould interpretam dois médicos espertalhões que só pensam em diversão, bebida e e mulheres enquanto atendem soldados feridos num campo na Guerra da Coreia, nos anos 1950. Lançado em plena ação norte-americana na Guerra do Vietnã, o filme causou polêmica. Está disponível no Star+ e o trailer pode ser visto aqui. Outros grandes títulos da carreira de Sutherland que podem ser vistos no streaming: “Klute, o Passado Condena” (1971), na AppleTV; “Casanova de Fellini” (1976), no Looke; “Invasores de Corpos” (1978), na Amazon; “Gente como a Gente” (1980), na AppleTV; e “O Buraco da Agulha” (1981), no Looke.
Curiosidade para cinéfilos da antiga e fãs dos desenhos clássicos da Warner: Sutherland participou de uma das conversas mais incríveis nos bastidores do cinema. Ao dar orientações para ele e Gould nas filmagens de “M*A*S*H”, Robert Altman teria dito: "Os personagens de vocês são safados, espertos e inteligentes. Vocês são os caras mais espertos do mundo, vocês sempre se dão bem. Quero que atuem como se vocês fossem o Pernalonga, entenderam? Não Pernalonga e Patolino, que é idiota. Quero dois Pernalongas, ok?".
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