TORPEDO # 38 - Uma volta endiabrada aos anos 1970
Em cartaz nos cinemas, “Entrevista com o Demônio” é um filme que já nasceu com jeitão de “cult”, unindo algum humor e muito terror num estúdio de TV
CINEMA
Uma câmera na mão e o diabo no corpo
Os anos 1970 e 1980 estão na moda para ambientar novos filmes. E é preciso reconhecer que poucos projetos conseguem arremessar o espectador ao passado com a mesma intensidade do que “Entrevista com o Demônio”, que está nos cinemas brasileiros. Impossível dizer que os irmãos Cameron e Colin Cairnes, a dupla por trás dessa empreitada, são cineastas sem talento. Escrever e dirigir um filme de terror que se passa dentro de um programa de TV transmitido ao vivo é um jorro de criatividade.
Na trama, o ano é 1977. David Dastmalchian, coadjuvante em blockbusters como “Oppenheimer”, “Duna” e “Esquadrão Suicida”, interpreta Jack Delroy, produtor e apresentador de um programa de auditório que anda mal das pernas quanto à audiência. Para dar uma turbinada no ibope, ele aceita levar ao ar uma dupla inusitada: uma garota que está possuída pelo demônio e sua tutora. O ceticismo é geral, mas logo o público no auditório do programa e os espectadores do cinema vão perceber que há uma mentira e uma verdade nisso. A mentira é que a mulher não consegue controlar a garota, e a verdade é que a menina está realmente possuída pelo demônio.
Com uma reconstituição de época primorosa, desde o visual dos atores até a textura da imagem da TV analógica na transmissão do programa, é evidente que o filme se sustenta num balanço entre humor e terror, mas há uma nítida diferença de resultados. As situações cômicas, embora com alguma graça, às vezes são óbvias demais. Porém, quando entra no modo assustador, o filme realmente pode incomodar quem está assistindo. Longe da perfeição, “Entrevista com o Demônio” é uma enorme usina de ideias. Precisa ser assistido por qualquer um que goste de cinema. Veja aqui o trailer.
LIVRO
As ideias de Hanif Abdurraqib, agora em português
É surpreendente perceber que um dos mais instigantes pensadores negros do atual panorama norte-americano é um sujeito que transita tranquilamente com referências da chamada cultura pop branca. Hanif Abdurraqib, 40 anos, educado na infância segundo a religião muçulmana e hoje um importante poeta à margem de qualquer crença, pode aparecer numa foto vestindo uma camiseta com estampa da banda de rock inglesa Joy Division ou entrar em grupos de discussão para expor sua paixão por filmes estrelados por John Wayne. Esses exemplos um tanto simplórios podem facilitar o entendimento de como Hanif costuma se apresentar em debates diante de plateias onde brancos e negros dividem poltronas. Está saindo agora no Brasil, pela WWF Martins Fontes, um livro de ensaios com sua visão muito peculiar das manifestações de cultura pop negra. “Um Pequeno Demônio na América: Notas em Homenagem à Performance Negra”, com ótima tradução de Stephanie Borges, é uma plataforma na qual o escritor e crítico musical deposita e processa memórias pessoais, peças de muita reflexão sobre o ativismo na sociedade atual e alguns ensaios que carregam formatação bem próxima de crônicas descontraídas.
Seu extenso trabalho de crítica musical, em veículos de enorme prestígio como “Pitchfork”, “The Fader” e até “The New York Times”, resulta em boa parte do material focada em grandes nomes negros da canção, indo de Josephine Baker a Beyoncé, sem deixar de lado um olhar obrigatório para o hip hop e, claro, Michael Jackson. O livro que sai agora no Brasil foj publicado originalmente em 2021, mas é possível, para quem domina o inglês, encontrar nas redes muito material do autor antes e depois desse lançamento. Fundamental é seu primeiro livro de ensaios, “They Can't Kill Us Until They Kill Us”, de 2017, que enquadra o mundo contemporâneo na ótica do rap.
STREAMING
Muito mais do que o braço direito de Springsteen
Quando começou a tocar guitarra em bandas de moleques pelos botecos de Nova Jersey, Steven van Zandt era chamado de “Little Steven”, por causa de sua baixa estatura. Mas ela escondia um grande talento para guitarra e um carisma muito maior ainda, que o levou a ser disputado por vários grupos da cena daquela área. Ele começou a ser fiel aos projetos que eram montados por um de seus melhores amigos, um tal de Bruce Springsteen. Depois de várias bandas que não deram certo, ele pegou carona no sucesso de Springsteen como guitarrista do seu grupo de apoio, a E Street Band. Seguindo o amigo pelos palcos do planeta, às vezes encontrava tempo para gravar seus disquinhos solo e fazer ativismo, chegando a liderar um movimento de artistas da música contra o Apartheid na África do Sul.
Mas a grande guinada de sua vida foi arriscar-se com o ator, e ele fez isso num papel em uma das séries mais bem-sucedidas da história, “The Sopranos” (1999-2007). Ele interpretou ali, com desenvoltura, Silvio Dante, um dono de clube de strip-tease meio esquisitão, numa série de mafiosos onde a esquisitice transbordava para todos os lados. Agora, aos 73 anos, ele ainda toca com Springsteen, grava suas próprias coisas, produz outros amigos no estúdio e parece muito bem resolvido com sua vida. Quem ficou interessado na história desse sujeito singular pode assistir ao documentário “Sevie Van Zandt: Disciple”, disponível no Max. Muito bacana, o filme deve atrair quem deseja conhecer uma figura ímpar na cena do rock e também quem se interessa em descobrir mais detalhes sobre a vida de Bruce Springsteen antes do estrelato. Grande documentário rock and roll. Eis aqui o trailer.
MÚSICA
Um disco completamente fora da curva do pop
Numa pergunta que só faz sentido para quem já passou dos 40, qual foi a última vez que você escutou rádio? Emissora de rádio de verdade, não playlist de Spotify ou Deezer. Muita gente deve ter perdido esse hábito. Para quem quiser experimentar novamente essa sensação, de ouvir uma música atrás da outra sem informação nenhuma sobre qual será a próxima da fila, uma opção é escutar um dos discos mais bizarros de 2024. “Diamond Jubilee” tem duas horas de duração e as faixas são muitas, entre músicas longas e outras que parecem vinhetas. Quem está por trás dessa proposta é Cindy Lee. Essa persona criada pelo roqueiro canadense Patrick Flegel existe desde 2010, quando ele terminou a promissora banda indie Women, passando a se vestir no palco como uma diva soul inglesa dos anos 1960 e a fazer música pop sem se importar muito em borrar os limites entre um gênero e outro. “Diamond Jubilee” tem um pouco de tudo, e isso não é exagero. Tem rock, pop, soul, rap, disco music, funk, jazz, progressivo...
As músicas vão se sucedendo e não há a menor preocupação em criar alguma identidade entre elas. O resultado é, óbvio, irregular. Algumas canções são mais ou menos, outras são muito boas de verdade, mas em todas fica evidente que Cindy Lee tem recursos para avançar em todas essas frentes musicais. A TORPEDO indica aqui um link do YouTube no qual é possível escutar o disco de ponta a ponta. Ou então ver aqui um clipe mais antigo, “I Don’t Want to Fall in Love Again”, um quase hit. Este é o sétimo álbum solo de Patrick Flegel/Cindy Lee. Procurar os trabalhos anteriores nas plataformas pode oferecer boas horas de um agradável garimpo pop.
STREAMING
As duas versões de “Acima de Qualquer Suspeita”
Quem der uma busca pelo título “Acima de Qualquer Suspeita” nas plataformas de streaming vai esbarrar em duas produções diferentes. O best-seller publicado pelo escritor americano Scott Turow em 1987 voltou ao centro das atenções com a recém-lançada minissérie produzida pelo canal AppleTV+. Confira aqui o trailer. A produção traz Jack Gyllenhaal como Rusty Sabich, um promotor público acusado de assassinato, num jogo complicadíssimo de pistas falsas ou verdadeiras. É daqueles lançamentos da plataforma em que os novos episódios são colocados à disposição semanalmente, e cada novo desdobramento da história de Sabich e seus apuros parece melhor que os anteriores.
Em 1990, o mesmo livro foi adaptado num longa com Harrison Ford. É possível assistir ao trailer aqui. Foi um grande sucesso de bilheteria, principalmente pela atuação do astro, uma das melhores de sua carreira, e pelo final surpreendente que fazia o público no cinema ficar boquiaberto. Com a badalação em cima da nova série, o filme estrelado por Ford e dirigido por Alan J. Pakula está de volta ao streaming, na AppleTV. Série e filme merecem ser conferidos. Quem quiser um conselho do editor desta newsletter, o melhor é acompanhar primeiro a série completa e só depois ir para o longa, para deixar seu final surpresa preservado.
O MUNDO JÁ FOI MELHOR # 38
Fotos comprovam: a Terra foi habitada por gente muito bacana
A foto tem 55 anos e traz dois nomes incontornáveis da cena pop do século passado: Bob Dylan, o bardo que se tornou a voz da contracultura, e Johnny Cash, o cantor e compositor que jogou um tom sombrio sobre a música country. Os dois gravaram um dos maiores duetos da história, “Girl from the North Country”, faixa arrepiante que abre o álbum “Nashville Skyline”, que Dylan lançou em 1969 (aqui está o áudio). Morto em 2003, aos 71 anos, Cash volta ao mercado agora com lançamento de “Songwriter”, o álbum número 72 de sua carreira. Reúne gravações brutas, verdadeiras “fitas demo”, no jargão musical, que ele registrou em 1993, quando estava no hiato de contratos fonográficos. O disco, evidentemente recuperado e turbinado por toda a tecnologia hoje disponível para resgates do tipo, tem uma força impressionante. Eis aqui o clipe com áudio de “Well Alright”, primeiro single do álbum. Saindo pela Universal Music, está nas plataformas. Mais um capítulo do lendário Johnny Cash.
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