TORPEDO Biblioteca # 08 – Obra-prima futurista numa Buenos Aires atacada
Lançada em 1957, HQ de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López permanece irretocável como ficção científica apocalíptica encharcada de crítica política
QUADRINHOS
Uma versão de luxo para o clássico sci-fi argentino
Deixando de lado Quino e sua genial Mafalda, Héctor Germán Oesterheld pode ser considerado o maior roteirista de quadrinhos da Argentina. Sua lista de obras é extensa, ao lado de vários desenhistas, e já na fase inicial, nas décadas de 1950 e 1960, ele impregnava HQs de aventura com críticas políticas à direita argentina. Esse viés está em sua obra-prima “O Eternauta”, publicada em tiras na revista semanal “Hora Cero”, entre 1957 e 1959. A história de um homem que vem do futuro e conta para um quadrinista os estranhos acontecimentos pelas quais a humanidade irá passar é desenhada por Francisco Solano López. Seu traço de tendência realista certamente colaborou demais para que “O Eternauta” se transformasse num clássico. No roteiro, Juan Salvo, em seu icônico traje de proteção, relata ao quadrinista (obviamente um alter ego de Oesterheld) que uma nevasca tóxica mortífera caiu sobre Buenos Aires. Os poucos sobreviventes descobriram que o fenômeno foi provocado por alienígenas. Uma batalha se iniciou, numa fauna de aliens que inclui insetos gigantes e homens-robôs. Por toda a narrativa, uma crítica contundente ao militarismo. A editora Pipoca & Nanquim publica agora no Brasil uma edição de luxo, com capa dura e 372 páginas, com a reprodução completa das tiras.
Oesterheld lançou uma nova versão da história em 1969, dessa vez com desenhos de Alberto Breccia, e uma sequência em 1976, de novo com Solano López. Em ambas o tom político aumentou muito, em clara referência ao golpe militar na Argentina. Oesterheld se uniu ao grupo guerrilheiro Montoneros e desapareceu em 1977, aos 59 anos, considerado pouco tempo depois morto pelas forças da ditadura. De lá para cá, alguns outros autores retomaram o personagem, em sequências muito inferiores. No ano que vem estreia na Netflix uma adaptação da história, com o grande ídolo do cinema argentino Ricardo Darín vestindo a roupa protetora de Juan Salvo. Confira aqui um teaser. “O Eternauta” é irresistível para qualquer fã de quadrinhos.
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CRIME
Um romance que expõe as fissuras sociais chilenas
Filha de pai cineasta e mãe jornalista, a chilena Alia Trabucco Zerán tem 41 anos e, ainda bem, desistiu de seguir carreira como advogada. Apesar de falar meia dúzia de idiomas, escolheu o espanhol do ambiente familiar para escrever alguns livros de impacto. Ela mesmo reconhece que produz de uma forma lenta. Chega ao Brasil, em lançamento da Fósforo, seu terceiro e mais recente livro, “Limpa”, uma narrativa intrigante que começa apresentando um crime e mantém o mistério sobre o que aconteceu. Mas, em repetidas viradas de chave no enredo, a autora abre inúmeros caminhos para o leitor, mesmo que a personagem principal permaneça numa sala de interrogatório policial. Estela saiu do gélido sul chileno para tentar uma vida melhor em Santiago. Foi trabalhar para um casal rico e por sete anos cuidou da casa e também da filha dos patrões, que sofria com crises devastadoras de ansiedade. Agora a menina está morta e Estela é suspeita de ter cometido o crime. Bastam poucas páginas para fisgar qualquer um. Essa atração inegável do romance proporcionou a “Limpa” ser vendido para 13 países antes mesmo de ter seu lançamento no mercado chileno, em 2022. Definido pela própria autora como um “thriller social”, o romance repete a conexão entre vidas íntimas e crimes hediondos que era a base do livro anterior de Alia, “As Homicidas” (2019), lançado também pela Fósforo. Nele, ela investiga quatro crimes reais que chocaram a sociedade chilena no século 20, todos perpetrados por mulheres. O volume faz uma conexão incrível entre o documental e a invenção. Para quem se sentir atraído pela fluência da prosa enxuta de Alia Trabucco Zerán, seu livro de estreia também tem edição brasileira. “A Subtração” (2015) saiu aqui pela Moinhos e reúne jovens chilenos lidando com as sequelas emocionais da ditadura. Como os outros dois livros, esse também é impossível de largar.
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ROMANCE
A húngara que tomou o francês para sua arte
Com a repressão soviética estabelecida na Hungria depois da revolução de 1956, Ágota Kristof deixou o país aos 21 anos, com seu marido e a filha de quatro meses. A família foi morar numa cidadezinha de menos de 20 mil habitantes no interior da Suíça. Ágota trabalhou durante cinco anos numa fábrica de relógios, ao mesmo tempo em que aprendia o francês do qual não sabia uma única palavra ao chegar a seu novo país. Curiosamente, ela nunca mais deixou esse lugar, até morrer, em 2011, aos 75 anos, deixando como legado extraordinário sete romances escritos em francês, entre 1986 e 2005. Essa jornada da construção de uma escritora numa língua completamente diferente é relatada num livro arrebatador, “A Analfabeta”, original de 2004, lançado no Brasil no início do ano pela editora Nós e só agora captado no radar desta newsletter. A autora expõe um drama íntimo pesado. Extremamente pobre na Hungria, foge de uma vida na qual até mesmo seu idioma familiar é arrancado dela, obrigada a aprender o russo trazido pelos invasores de sua terra. Contando a história, essa que é uma das mais importantes escritoras europeias do século passado mostra como construiu sua devoção às palavras. Com elas, agora francesas, ela tenta transmitir sua incômoda situação no mundo guiado pela guerra. “A Analfabeta” tem trechos emocionantes. Alguns podem chamar de um “livrinho”, pois tem apenas 56 páginas. Mas, depois de aberto, não deixa ninguém indiferente. Depois desse “aperitivo literário”, o passo é ler “A Trilogia das Gêmeas”, box recém-lançado pela Dublinense. Reúne três romances, “O Grande Caderno”, “A Prova” e “A Terceira Mentira”, que contam a história de Claus e Lucas, gêmeos deixados na casa da avó para tentarem sobreviver à guerra. Uma obra-prima em três partes.
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TECNOLOGIA
A Inteligência Artificial vai invadir o corpo humano
Não é todo mundo que pode ter o cargo de “pesquisador sênior visionário”. É exatamente dessa forma que Ray Kurzweil aparece no organograma do Google. Há 35 anos estudando a Inteligência Artificial e dedicando sua vida a fazer as pessoas entenderam que o bicho não é tão feio quanto parece, ele tem lançado no Brasil “A Singularidade Está Mais Próxima”, pela Aleph. O subtítulo na capa dá a dimensão de como a proposta a ser discutida é ousada; “A fusão do ser humano com o poder da Inteligência Artificial”. Kurzweil, que traz no currículo uma espantosa lista de previsões corretas sobre futuro próximo, defende que já em 2029 a IA vai atingir o nível da inteligência humana. Para ele, isso abre a possibilidade de mudanças radicais para as pessoas, como o prolongamento da vida além de 120 anos, a conexão dos cérebros de todos a uma nuvem de arquivo, o crescimento de energias sustentáveis e um uso revolucionário de impressora 3D, que se tornaria um eletrodoméstico tão banal quando um liquidificador. O trabalho de Kurzweil é tão singular porque ele foi o primeiro a relacionar IA com biotecnologia, jogando o foco para as alterações na vida humana com o avanço desse recurso. Ilustres como Bill Gates e Sam Altman, CEO da empresa que criou o ChatGPT, afirmam que ninguém na Terra sabe tanto sobre IA quanto Kurzweil. E o discurso dele é extremamente palatável, acessível a todos, basta ter curiosidade sobre o tema. Kurzweil escreve “fácil”, até quando trata de temas que mais parecem uma ficção científica tenebrosa, como a tecnologia de “After Life”, para “reviver” pessoas mortas utilizando seus dados coletados em vida e seu DNA. “A Singularidade Está Mais Próxima” pode ser lido como uma aula de ciências ou literatura sci-fi. No caso de Ray Kurzweil, as duas coisas andam juntas.
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