TORPEDO Biblioteca # 14 - Uma obra para quem não vive sem livros
Autor português de mais de 60 livros, o escritor e ilustrador Afonso Cruz discute a paixão dos leitores numa mistura de memórias, crítica literária e cultura de almanaque
LITERATURA
“O Vício dos Livros” exalta a celebração da leitura
O editor da newsletter pede licença aos assinantes para tratar aqui de um livro que não é exatamente um lançamento recém-chegado às livrarias. “O Vício dos Livros” já saiu pela Dublinense há quase um ano. Mas é realmente difícil acompanhar o ritmo de publicações do escritor português Afonso Cruz. Aos 55 anos, ele já escreveu 36 livros e publicou outros 24 títulos de volumes ilustrados para o público infantojuvenil, nos quais ele empresta seu traço de desenhista a poemas e prosas curtas de grandes nomes da literatura portuguesa. Entre os 36 títulos autorais mencionados, é possível ler romance, poesia, contos, teatro e ensaios. E seus textos são encontrados também em 17 livros colaborativos e em décadas de contribuições a jornais e revistas de seu país. Ah, ele também canta e toca guitarra e banjo na banda de rock The Soaked Lamb, que já lançou três álbuns. Bem, depois da apresentação desse currículo interminável, certamente a pergunta é se tudo o que ele faz é bom. Afonso Cruz nem sempre acerta. Faz parte de um grupo bem limitado de autores que escrevem em profusão, sem parar, seja para pagar os boletos ou porque sua cabeça é realmente uma usina de ideias. Mas a qualidade é muito boa, há pelo menos uma dezena de trabalhos que valem muito a pena ler. Mas Afonso Cruz está na newsletter porque “O Vício dos Livros” traz um corte bem interessante na sua produção. É uma obra de não ficção na qual ele tenta expor da maneira mais franca possível como é o Afonso leitor. O resultado é uma mistura de livro de memórias pessoais, análise literária e um pouco de cultura de almanaque, já que ele resgata algumas curiosidades da história da literatura. E a abrangência é muito grande. Fala de muitos escritores portugueses, alguns completamente desconhecidos no Brasil, mas também fala de Baudelaire, Kafka, clássicos gregos e romanos e até alguns brasileiros. Tudo em um ambiente de exaltação à leitura. Ler “O Vício dos Livros” é como assistir uma aula com aquele professor bacana, que sabe simplificar e romantizar o ensino da literatura.
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ROMANCE
O grande retratista dos jovens negros na América
Lançado no Brasil em 2021, “Mundo Real” foi o romance de estreia do americano Brandon Taylor. A recepção foi calorosa. A maneira como o autor constrói situações que trazem à baila as incertezas de jovens negros foi saudada como um grande retrato da geração millennial. Então com 32 anos, ele recusou rótulos de porta-voz de qualquer geração que seja, mas o carimbo na mídia já estava bem impresso. Em seu segundo livro, a coletânea de contos “Filthy Animals”, ganhou comparações impressionantes, com Alice Munro e Anton Chekhov! Depois de tanta badalação, é estranho ver uma recepção mais desconfiada para “Vidas Tardias”, lançado agora no Brasil pela Fósforo. Uma análise séria desse segundo romance de Taylor, baixada a poeira, precisa reconhecer que ele é tão bom ou até melhor do que o anterior.
A trama se passa em Iowa City, onde vive um grupo heterogêneo de pós-graduação, entre eles escritores, dançarinos e músicos. Os personagens são muito atraentes. É possível destacar pelo menos quatro: o bailarino Noah, talvez o mais complexo de todos, com vocação para relacionamentos ruins; Seamus, um poeta mordaz com tendências depressivas debaixo de muita verve; Fatima, mais preocupada com a falta de dinheiro que a obriga a trabalhar num café entre as aulas de dança; e Ivan, jovem que foi impedido de tentar a carreira na dança e passa a produzir conteúdo pornô. Nos encontros e desencontros da turma, tem de tudo um pouco: as dificuldades de seguir na carreira, as relações de altos e baixos com amigos, namorados e professores, questões de classe e gênero, tensão racial, tudo isso num processo tortuoso de autoconhecimento. Uma das observações críticas nas resenhas do livro é ele se parece muito como “Mundo Real”. Uma bobagem. “Vidas Tardias” é uma espécie de evolução do romance de estreia. Esse tipo de crítica é tão rasteira quando reclamar que Woody Allen concentrou seus roteiros entre intelectuais de Manhattan. Uma crítica míope, frouxa. Pelo menos neste segundo romance, Brandon Taylor mostra um arsenal de sutilezas capaz de criar personagens muito particulares. E o ritmo da narrativa é ótimo.
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HISTÓRIA
Um livro de quase 90 anos que fala do mundo atual
TORPEDO adora um livro antigo, não muito badalado e até esquecido, mesmo sendo uma obra adiante de seu tempo. Bem, o austro-húngaro Ödön von Horváth (1901-1938) é um gigante até hoje na Alemanha (ele escreveu em alemão), mas o leitor brasileiro não o conhece. Ele publicou sete livros, entre romances e não ficção, mas é como dramaturgo que Horváth conquistou um lugar na galeria dos melhores de sua geração. Deixou um legado de 18 peças, escritas entre 1920 e 1937, e é possível reconhecer em todas, em maior ou menor escala, mesmo nos textos românticos, uma crítica feroz ao totalitarismo que avançava na Europa. Opositor ferrenho do nazismo, ele procurou exílio em Paris quando Hitler subiu ao poder. Por ironia, o autor que dizia a todos ter certeza que um dia morreria pelas mãos dos nazistas foi fulminado por um raio durante uma tempestade na capital francesa, aos 36 anos. A Todavia lança aqui uma nova edição de “Juventude sem Deus”, que foi publicado pela primeira vez na Holanda, em 1938, depois de ter sido proibido na Alemanha. Simplesmente um dos livros preferidos dos gigantes Thomas Mann e Peter Handke, sua publicação hoje faz muito sentido diante do avanço de um pensamento obscurantista em todo o planeta. O personagem principal é um professor que não consegue compactuar com o regime racista e colonialista imposto pelo nazismo, e esse drama pessoal encontra eco nas tensões da Europa pré-Segunda Guerra Mundial. Uma discussão notável sobre manipulação ideológica dos jovens e uma total inversão de valores. Impossível não encontrar aqui os ecos da nova era Trump.
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MÚSICA
Os efeitos do exílio político na obra de Caetano
Caetano Veloso tem sido objeto de muitos livros recentes. Os 80 anos de vida comemorados em 2022 desencadearam de lá para cá uma proliferação de volumes biográficos e analíticos. Como quase sempre acontece nesses fenômenos, muita coisa escrita sobre ele é repetitiva, às vezes apenas obras bem-intencionadas, mas sem grandes sacadas. Mas a historiadora Márcia Fráguas consegue um corte certeiro e interessante em “Its’ a Long Way: O Exílio em Caetano Veloso”, lançado em capa dura pela editora Garota FM Books. A obra se propõe a analisar os discos que Caetano lançou entre sua prisão, em 1969, e o retorno ao Brasil depois do exílio na Europa, em 1972. “Caetano Veloso” foi gravado num pequeno estúdio em Salvador em junho de 1969, quando Caetano e Gil estavam em prisão domiciliar, depois de terem sido detidos no final de 1968. Um álbum que vai da bossa nova ao rock, passando por fado e tango. E que teve o sucesso da canção tradicional “Marinheiro Só”, adaptada numa versão entusiasmada pelo cantor. Também chamado “Caetano Veloso”, o álbum de 1971 foi gravado em Londres, tem um tom melancólico e letras em inglês, com destaque para “London, London”. E “Transa”, registrado também num estúdio londrino, em 1971, e lançado em janeiro do ano seguinte, é uma das obras-primas de Caetano, com clássicos como “Nine Out of Ten” e “Mora na Filosofia”. O bacana no livro é que a autora esmiúça esses discos, mas também reflete muito sobre as consequências das perseguições dos militares entre a comunidade de artistas no Brasil. Um ótimo livro sobre Caetano, mas não só sobre Caetano.
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