TORPEDO Biblioteca # 21 - Ottessa Moshfegh e sua estreia perturbadora
Uma vida rude e miserável está trancada na cabeça do marinheiro McGlue e também nas frases curtas e cínicas de um grande nome na moderna literatura americana
EM ALTO MAR
Um personagem criado com culpa, medo e álcool
Personagens que incomodam, quase sempre solitários ou marginalizados. Talvez até alienados, traumatizados. E a escritora norte-americana Ottessa Moshfegh consegue fazer essa turma ficar interessante ao escrever o que acontece com cada um de seus desajustados de uma forma seca, de frases justas para pensamentos cínicos. Nascida em 1981, em Boston, ela tem um ótimo perfil para aquele textinho biográfico na orelha do livro. Ela é filha de imigrantes. Sua mãe croata e seu pai iraniano são músicos, e deram a ela uma educação totalmente liberal. Ottessa viajou muito (chegou a ser garçonete num bar punk na China), fez um monte de cursos e hoje, como ela mesmo afirma, sabe muito pouco de um monte de coisas e não decide o que coloca como “profissão” na hora de preencher uma ficha num hotel. Bem, ela pode escrever ali “ótima escritora”, porque é isso que ela é. A Todavia já havia colocado nas livrarias três provas disso: “Meu Nome Era Eileen” (2015), “Meu Ano de Descanso e Relaxamento” (2018) e o estupendo “Morte em Suas Mãos” (2020). E agora a editora certamente atende ao desejo de muitos leitores ao lançar a primeira obra de Ottessa, “Ressaca”. Publicado originalmente em 2014, tem como personagem central McGlue, sujeito que acorda ainda meio bêbado e coberto de sangue, amarrado no porão do navio onde trabalha como ajudante de convés. Está em alto mar e é acusado pela tripulação de ter matado Johnson, que era justamente seu grande amigo na tripulação. Provavelmente vítima de uma concussão, ele é incapaz de lembrar o que aconteceu nas horas recents. Aos poucos, indo para ser julgado em Salem, Massachusetts, ele vai se recordando dos acontecimentos recentes e também de uma vida miserável, movida a álcool e violência. Ambientado no século 19, o primeiro livro de Otessa é herdeiro dos romances de marinheiro e traz uma angústia confinada na cabeça de McGlue e nas frases curtas e certeiras da autora. Um livro que não dá para largar.
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MÚSICA
Abre alas para Janis Joplin passar
A estadia de Janis Joplin no Brasil teve duas semanas e foi iniciada em 7 de fevereiro de 1970, oito meses antes de sua morte. Sua passagem foi do balacobaco, embora não tão selvagem quanto algumas lendas urbanas tentam convencer quem não acompanhou tudo de perto. Durante esse tempo, a maior parte hospedada no hotel Marina Palace, em Ipanema, a cantora americana fez um “intensivo” nas areias e nas noites cariocas. Muito longe do roteiro tranquilo prometido inicialmente ao definir sua viagem como um desejo de descanso e relaxamento na tentativa de combater o vício em heroína. Fazer um diário de viagem mais fiel ao que aconteceu foi a intenção do escritor e jornalista Gonçalo Junior com “Janis Joplin Só Queria Sambar”, lançado pela editora Noir. Para limar as histórias bizarras e sem comprovação, construir um roteiro carioca mais confiável para a voz feminina mais poderosa do rock tomou do autor um ano de entrevistas e pesquisas, inclusive em arquivos públicos do Serviço Nacional de Informações (SNI). Afinal, era a ditadura e uma presença tão “subversiva” como Janis chamou a atenção do governo. O livro vem carregado de muitas fotografias e reproduções de páginas de jornais e revistas da época, cobrindo Janis no Rio, em Salvador e em Arembepe. É interessante comparar esse trabalhado abnegado e detalhado de Gonçalo com os relatos sobre a viagem compilados pela biógrafa Holly George-Warren, que teve seu relato sobre Janis lançado no Brasil pela editora Seoman, em 2022. Entre outras coisas, para tentar entender porque não foi adiante a proposta de Janis para um show gratuito em uma praça carioca. Num quebra-cabeças de declarações e informações, que falam de diversão e de muitos perrengues, o autor dispara no livro: “Nunca se mentiu e inventou tanto sobre a vinda de uma celebridade internacional ao Brasil”. Essas férias tropicais foram as últimas da cantora. Nos meses seguintes, ela terminou as gravações do álbum “Pearl”. Janis Joplin morreu em 4 de outubro do mesmo ano, de overdose de heroína.
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TORPEDO Sebo é uma lista de livros, discos de vinil, CDs, Blu-ray e DVDs que eu estou colocando à venda, num exercício duríssimo de desapego. São mais de 1.000 itens, em ótimo estado. Quem quiser conferir o que está disponível deve mandar um e-mail para thales1962@gmail.com, e eu envio a lista para os interessados.
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SCI-FI
Quando homens se tornam deuses tecnológicos
O americano Roger Zelazny (1937–1995) foi um dos grandes nomes da chamada "Nova Onda" da ficção científica dos anos 1960 e 1970. Reflexo das interações geradas pela contracultura sessentista, o movimento buscava romper com os padrões tradicionais desse tipo de narrativa, incorporando experimentalismo estilístico, filosofia, psicologia e mitologia. Transitando entre sci-fi “raiz” e literatura de fantasia, Zelazny venceu algumas vezes os prêmios Hugo e Nebula, láureas máximas do gênero. A Aleph acaba de soltar uma edição de capa dura de “Senhor da Luz”. Lançado originalmente em 1967, é talvez o volume que melhor exibe as fusões habituais de Zelazny. É uma obra que mistura ficção científica com mitologias hindu e budista. É ambientada em um planeta colonizado por humanos, onde os primeiros migrantes, agora tecnologicamente superdesenvolvidos, decidiram ser tratados como deuses, assumindo identidades como Shiva, Vishnu, Kali e outros. Quem conduz a narrativa é Sam, que acredita que todos enlouqueceram e se opõe a essa dominação adotando o codinome Buda. Não que ele também tenha delírios de acreditar ser um deus, simplesmente adota ideias filosóficas budistas contra essa espécie de autoritarismo divino. “Senhor da Luz” é uma crítica pesada a autoridades que manipulam sistemas religiosos para manter o controle do povo. E ter os “poderes” dos falsos deuses conseguidos por recursos de alta tecnologia é uma crítica que encontrou forte adesão entre os leitores influenciados pelos hippies na época do lançamento. Zelazny não é um escritor “simples”. Sua narrativa é fragmentada, recorrendo a muitos saltos temporais. Mas o que poderia ser algo difícil para o leitor acaba se tornando um desafio divertido em busca do entendimento de todos os disparos de ideias filosóficas que sua obra carrega.
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GASTRONOMIA
Adivinhe quem vem para jantar? Stanley Tucci
Não é apenas gastronomia. O ótimo ator americano Stanley Tucci, de “O Diabo Veste Prada”, “Jogos Vorazes” e o recente “Conclave”, entre tantos outros filmes, escreveu diários durante boa parte de seus 64 anos. “O Que Eu Comi em um Ano”, lançado agora pela Intrínseca, une esse hábito a um dos assuntos preferidos do autor, a comida, e deixa pública sua maneira de registrar o dia a dia numa página em branco. É um livro mais despretensioso do que “Sabor: Minha Vida Através da Comida”, que foi editado no Brasil em 2022, também pela Intrínseca. Ali, Tucci esboça teorias sobre sua relação com alguns pratos e às vezes troca sua prosa engraçada por pontos de vista um tanto difíceis de defender. “O Que Eu Comi em um Ano” é muito mais divertido em suas reflexões e mais criativo no formato. Além da comida, ele fala de viagens e da família, e o texto fica mais temperado. E o grande mérito é escrever um livro que vai de cenas engraçadas a reflexões pesadas. Tucci passa facilmente de perrengues em aeroportos e refeições que se revelaram uma cilada indigesta, fazendo humor autodepreciativo, ao luto pela primeira esposa. Seu diário gastronômico, itinerante e emocional é uma leitura bem agradável. E pode harmonizar bem com a minissérie documental “Tucci na Itália”, disponível no Disney+, que traz em cinco episódios viagens do ator em regiões italianas diferentes, para comer e conversar, tentando estabelecer ligações entre as receitas de cada lugar e seus habitantes. Uma série muito bacana, com tanta massa boa que pode fazer quem assiste nunca mais abrir um pacote de miojo.
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